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Desencontro
Ivone Ferioli Nunes
Naquele dia ele não foi para a roça.Como não
acontecia há muito tempo, a enxada ficou atrás da
porta da cozinha.
A mulher se levantara (aliás nem bem se deitara)
para fazer o café no fogão que estava aceso desde a
véspera.Que cheiro gostoso na cozinha!
Tomou duas xícaras bem quentes, devagarinho,
saboreando cada gole, com um pedaço de pão.
Estalando a língua, colocou o resto numa garrafinha,
que foi na sacola de supermercado junto com a sobra
do pão.
Pegou a capa e calçou as botas para se proteger da
chuva que caía.
Certificou-se de que a carteirinha estava no bolso,
bem protegida para não estragar. Devoto de Nossa
Senhora, benzeu-se diante da imagem e despediu-se da
mulher, que apreensiva, observava todos aqueles
preparativos.
Abriu a porta e sentiu o vento gelado da noite. A
escuridão lá fora não o amedrontava. Estava
acostumado com ela,companheira de todas as
madrugadas, quando saía para ordenhar as duas
vaquinhas, suas riquezas.
Deixava o leite na cozinha e logo ia para o roçado
de milho, com feijão plantado entre as fileiras,
tudo tão murcho com a seca.
Parecia que a plantação, secando,acompanhava sua
fisionomia,que ficava cada vez mais magra, judiada
pela tosse que não passava dia e noite...
Assim pensando ,ia pela estrada, afundando os pés na
terra encharcada, mas abençoando a chuva a cada
passo.
Se lhe perguntassem, diria que era feliz. Tinha suas
vaquinhas , sua roça, uma boa companheira; as filhas
casadas, moravam na cidade e só apareciam de vez em
quando. Coitadas, a vida delas também era difícil.
Se não fosse aquela tosse danada que lhe tirava as
forças...
Estava piorando a cada dia sentindo cada vez mais
dores no peito, a garganta queimando e uma moleza
que fazia seu corpo pedir cama.
Imagine ele, homem acostumado a trabalhar, se ia
dormir em pleno dia.
Por iso a decisão de procurar o médico fôra tomada.
Caminhando pela madrugada dirigia-se à cidade para
tirar a ficha na agência do INSS e depois ser
atendido no Posto de Saúde.
Até ensaiava o que ia dizer ao doutor. Não queria
que ele pensasse que era um sujeito fraco, que ia
incomodá-lo por uma tossinha à toa.
Ensaiou até como falaria, diminuindo os sintomas, na
esperança que não lhe desse receita, pois não seria
fácil comprar os remédios.
Fez mentalmente uma relação do que a mulher já
preparara em casa: xarope de flor de mamão macho,
xarope de jatobá com mel, chá de agrião com puejo ,
leite fervendo antes de deitar, compressas quentes
nas noites frias para acalmar a febre.
Ainda era escuro quando chegou ao destino.Era
preciso vir cedo.
Na porta do prédio do INSS já se encontravam algumas
pessoas, molhadas como ele pela chuva que agora
havia aumentado.
Poucos conversavam, cada qual se apertando mais para
fugir do frio.
Lentamente o céu foi ficando cinzento, mostrando
ainda nuvens carregadas, que pouco se importavam com
o sofrimento daqueles coitados.
Tomou o café, mas não comeu o pão, murcho com a
umidade.
Só se confortava pensando no benefício que a água
faria à sua rocinha e ao pasto seco , o milharal
enchendo de espigas, a mulher fazendo pamonhas, as
vaquinhas pastando até não mais agüentar.
Quando a moça da agência chegou, às 8 h, foi um
alívio sair da chuva.
Entraram, molhando o chão, buscando um local seco
para descansar da noite terrível que enfrentaram.
Sozinho no ultimo banco, não agüentava mais a dor no
peito e na garganta, depois de tanto tossir. A
cabeça parecia não firmar, olhos embaçados, mão se
pés gelados.
De repente , tudo passou.Começou a sentir um bem
estar intenso, uma leveza, parecia flutuar...Nem o
barulho da chuva ouvia mais.
Não conseguia imaginar porque estava cercado de
gente, que gesticulava e falava coisas que não podia
ouvir.
Sua viagem à cidade fora só de ida.Ele não comeria
as pamonhas nem o curau.Apenas as vaquinhas
engordariam no pasto verde.
1 º Lugar no 5 º Concurso Literário Regional de
Matão
Realização da Prefeitura Municipal de Matão/2003
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