Reflexões
Fui criado com princípios
morais comuns.
Quando criança, ladrões tinham a aparência de ladrões
e minha única preocupação em relação à segurança
era a de que o porteiro do condomínio que eu morava
não me encontrasse na área de lazer do prédio
depois das 18 horas.
Mães, pais, professores, avós, tios, vizinhos eram autoridades
presumidas,dignas de respeito e consideração. Quanto mais
próximos, ou mais velhos, mais afeto. Inimaginável responder
deseducadamente a policiais, mestres, aos mais idosos,
autoridades. Confiávamos nos adultos porque todos eram
pais/mães de todas as crianças do condomínio, da rua,
do bairro, da cidade.
Tínhamos medo apenas do escuro, de casas abandonadas
e eu particularmente, de filmes de terror. Como é que chegamos
num ponto desse? Antigamente a gente tinha pavor dos militares,
principalmente na época da ditadura. Eles eram linha dura e
pegavam mesmo no pé dos bandidos e até em quem não era
bandido. Hoje os bandidos com um leve boato fecham todo
comércio em segundos.
Ouvindo hoje o Jornal da noite, deu-me uma tristeza infinita
por tudo que perdemos. Pelo medo no olhar de crianças, jovens,
velhos e adultos. Matar os pais, os avós, violentar crianças,
seqüestrar jovens, roubar, enganar, passar a perna, tudo virou
banalidades de notícias policiais, esquecidas após o primeiro
intervalo comercial.Agentes de trânsito multando infratores
são exploradores, funcionários de indústrias de multas. Policiais
em blitz são abuso de autoridade. Regalias em presídios são
matéria mostrada na tv com as autoridades dizendo que não
podem resolver nada na cara de pau. Direitos humanos para
criminosos, deveres ilimitados para cidadãos honestos.
Não levar vantagem é ser otário.Pagar dívidas em dia é bancar
o bobo, anistia para os caloteiros de plantão. Ladrões de terno
e gravata, assassinos com cara de anjo, pedófilos de
cabelos brancos.
O que aconteceu conosco?
Professores humilhados e mortos em salas de aula, grades em
nossas portas e janelas. Crianças morrendo de fome, gente com
fome de morte. Que valores são esses? Carros que valem mais
que abraço, filhos querendo-os como brindes por passar de ano.
Celulares nas mochilas dos que recém largaram as fraldas.
TV, DVD, telefone, vídeo game, o que vai querer em troca desse
abraço, meu filho? Mais vale uma marca de roupa que um diploma.
Mais vale um telão do que um papo. Mais vale um baseado do que
um sorvete. Que lares são esses? Bom dia, boa noite, até mais.
Jovens ausentes, pais ausentes, droga presente e o presente uma droga.
Quando foi que tudo sumiu ou virou ridículo? Quando foi que senti
compaixão pela última vez?Quando foi que lembrei o nome do meu
vizinho? Quando foi que olhei nos olhos de quem me pede roupa,
comida, calçado sem sentir medo? Quando foi que fechei a janela do
meu carro? Quando foi que me fechei?
Quero de volta a minha dignidade, a minha paz e o lugar onde o
bem e o mal são contrários, onde o mocinho vence o bandido e
o único medo é de quem infringe, de quem rouba e mata. Quero
de volta a ordem e progresso. Quero liberdade com segurança.
Quero tirar as grades da minha janela para tocar as flores.
Quero sentar na calçada, e minha porta aberta nas noites de verão.
Quero a honestidade como motivo de orgulho. Quero a cara limpa
e o olho no olho. Quero a vergonha, a solidariedade e a certeza do
futuro. Quero a esperança, a alegria. Quero sangue num banco
de sangue e não numa partida de futebol. Quero ser gente e não peça
de um jogo manipulado por TV a cabo. Quero a notícia boa,
a descoberta da vacina, a plantação para todos. Quero
ver os colonos na terra, as crianças no colégio, os jovens divertindo-
se de uma maneira sadia, os velhinhos contando histórias. Quero um
emprego decente, um salário condizente, uma oportunidade a mais.
Quero uma casa para todos, comida na mesa, saúde a mil. Quero
livros e cachorros e sapatos e água limpa.
Não quero listas de animais em extinção. Não quero clone de gente,
quero cópia das letras de música. Eu quero voltar a ser feliz! Quero
dizer basta a esta inversão de valores e ideais.
Quero xingar quem joga lixo na rua, quem fura a fila, quem rouba uma
caneta, quem ultrapassa a faixa, quem não usa cinto, quem não paga as
suas contas por safadeza, quem não dignifica meu voto. Quero rir de
quem acha que precisa de silicone, lipoaspiração, implante, regime,
cirurgia plástica, carro zero e quem sabe até um "importadinho", , bolsa XYZ, calça ZYX para se sentir inserido no contexto ou
ser "normal".
Abaixo a ditadura do "tem
que", as receitas de bolo para viver melhor, astécnicas para pensar, falar,
sentir! Abaixo o especialista, o sabe-tudorodeado de microfones e câmeras!
Abaixo o "ter", viva o "ser"!
E viva o retorno da verdadeira vida, simples como uma gota de chuva, limpa como
um céu azul, leve como a brisa da manhã!"
E definitivamente comum, como eu.
Sara Maria Binatti dos Anjos
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